FONTE: REVISTA ÉPOCA
Era uma terça-feira. Aparentemente, seria mais um dia normal na Camargo
Corrêa, um dos maiores grupos empresariais brasileiros, com 58 mil
funcionários espalhados pelo país e pelo mundo. Mas aquele 25 de março
de 2009 não foi um dia comum. Tinha tudo para ser lembrado como o início
de um dos mais rumorosos casos de promiscuidade no Brasil,
entre uma empreiteira e partidos políticos. Naquela manhã, 40 policiais
federais varejaram o edifício sede da Camargo Corrêa, em São Paulo,
e também casas e escritórios de funcionários e lobistas, suspeitos de
operar um esquema de lavagem de dinheiro para a construtora. Na ação,
batizada de Castelo de Areia, os policiais apreenderam uma série de
documentos que, segundo eles, traziam indícios de transferências de
recursos para políticos de diversos matizes, em contas no Brasil e no
exterior. Entre os citados na papelada estavam nomes de PMDB, PT, PSDB,
PR, DEM, PCdoB, PSB e PP. A operação que prometia dinamitar gabinetes em
todo o país acabou desmontada no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Sob a alegação de que a ação da PF se baseara numa denúncia anônima, os
ministros do STJ suspenderam o processo e anularam as provas recolhidas
pela Polícia Federal.
O Ministério Público Federal discordou da decisão e, em agosto de 2012, recorreu ao Supremo Tribunal Federal.
Em dezembro do ano passado, a subprocuradora-geral da República Maria
das Mercês Aras, que atuou no caso, recebeu um conjunto de documentos
que não integravam o processo original da Castelo de Areia. Por
considerá-los relevantes, ela remeteu os documentos a Rodrigo Janot,
Procurador-Geral da República, que representa o Ministério Público no
STF. Empossado em setembro, Janot disse a sua equipe que tem interesse
especial na Castelo de Areia. Segundo os procuradores envolvidos no
caso, tais documentos, a que ÉPOCA teve acesso, podem levar à reabertura
da Castelo de Areia. Os mesmos documentos causaram apreensão no grupo
próximo ao governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
O cruzamento dos novos documentos com os relatórios anteriores da
Castelo de Areia revela os bastidores da renovação da concessão do Metrô
Rio, sem licitação, assinada por Sérgio Cabral no final do primeiro ano
de seu governo, em 2007. Por meio de um Instrumento Particular de
Transação, a então concessionária do metrô, a Opportrans, quitou uma
antiga dívida do Estado com a Camargo Corrêa, por obras não concluídas
de expansão do metrô nos anos 1980. A Camargo Corrêa, em contrapartida,
encerrou cinco ações judiciais contra o Estado. O valor da dívida foi
estimado em R$ 40 milhões. Em troca, o governo antecipou em dez anos a
renovação do contrato da Opportrans e ainda a estendeu por mais 20 anos,
até 2038. Esse acordo foi publicado no Diário Oficial, de
forma discreta, no dia 31 de dezembro. Há uma incrível sucessão de
coincidências entre as datas e os valores dos pagamentos estipulados no
acordo e os documentos apreendidos na Castelo de Areia.
Em anotações manuscritas e e-mails recolhidos na ação da PF, aparecem
anotações que a polícia identifica como referências a Wilson Carlos de
Carvalho, secretário estadual de Governo há sete anos e coordenador das
últimas quatro campanhas de Cabral, e a Carlos Emanuel Miranda, sócio de
Cabral na SCF Comunicação e Participações Ltda. até setembro de 2013,
quando a empresa foi extinta. Os dois, segundo a PF, aparecem como
beneficiários de pagamentos suspeitos no Brasil e no exterior, relativos
à “dívida do Metrô Rio”. Os valores descritos nesses manuscritos e
mensagens eletrônicas correspondem exatamente a 5% dos valores pagos
pela Opportrans à Camargo Corrêa que constam do contrato publicado no Diário Oficial. As datas também. Em 2010, a Camargo Corrêa foi a principal doadora na reeleição de Cabral, com R$ 1 milhão.
O contrato assinado entre o governo do Estado, Opportrans e Camargo
Corrêa estipulou a dívida com a construtora em R$ 40 milhões. Segundo o
contrato, ela deveria ser paga em 12 parcelas mensais, a partir de 27 de
janeiro de 2008. As duas primeiras parcelas seriam de R$ 3,35 milhões, e
as demais dez de R$ 3,33 milhões. Do sétimo mês em diante, o valor
sofreria correção monetária. A correspondência é impressionante com
tabelas e e-mails apreendidos nos escritórios e residências do
ex-vice-presidente e então consultor da Camargo Corrêa, Pietro Bianchi –
apontado pela PF como o principal operador do esquema –, e do doleiro
Kurt Pickel, acusado de enviar o dinheiro dos beneficiários ao exterior.
Ambos foram presos na operação.
Nos e-mails e manuscritos de Bianchi, aparecem menções a percentagens
destinadas a nomes em código e abreviaturas. Segundo a PF, Wilson Carlos
era identificado nas anotações como “Secret. Gov Wilson”, “Secret.
Wil”, “Secret. C.C. Wilson”, “Wilson” e “Wils”. Bianchi costumava usar
nomes de animais para se referir a alguns destinatários do dinheiro.
Miranda, o ex-sócio de Cabral, aparece uma vez como “Carlos Miranda” e
outras três vezes, segundo a PF, como “avestruz”.
As anotações referentes aos dois sempre vinham relacionadas à “dívida
do Metrô RJ” e a um valor em reais, seguido de um cálculo de 5% desse
valor. Os 5% aparecem com um código. Por exemplo: “R$ 3,35 milhões, 5% –
R$ 167.500 – Secret.Gov.Wilson”. De acordo com a PF, esses 5% eram o
quinhão devido a Wilson Carlos ou a Carlos Miranda. Na época da
apreensão, a PF desconhecia o acordo para o pagamento da dívida do
metrô, apesar de ele ter sido publicado no Diário Oficial. Por
isso, não pôde estabelecer no inquérito uma relação entre essas
anotações e os pagamentos feitos pela Opportrans à Camargo Corrêa.
As coincidências entre os valores do acordo e os 5% atribuídos a Wilson
Carlos e a Carlos Miranda se tornam mais impressionantes a cada
pagamento. O primeiro repasse associado a Wilson Carlos, de R$ 167.500,
em 25 de fevereiro de 2008, corresponde a precisamente 5% dos 3,35
milhões pagos pela Opportrans à Camargo Corrêa naquele mês. Na anotação
atribuída a Bianchi, esta´escrito: “2ª parcela – R$ 3.350.000,00 – 25/02
–5% – 167.500,00 Secret. Gov. Wilson”. A quarta parcela devida pelo
Metrô Rio à Camargo Corrêa , no dia 27 de abril, era de R$ 3,33 milhões.
Os R$ 166.500 destinados à “Secret. Wil” correspondem exatamente a 5%
disso. Nas anotações, se lê: “Metrô RJ 4ª parcela – 27/04/08 – R$ 3,33
milhões – 5% R$ 166.500 – Secret. Wil”.
Quando as mensalidades pagas pelo metrô à Camargo Corrêa foram
reajustadas para R$ 3,56 milhões, a partir de julho de 2008, como previa
o acordo, os valores continuam a coincidir. Em 25 de novembro, a
abreviatura que, segundo a polícia, corresponde ao nome de Wilson Carlos
aparece anotado novamente, ao lado do novo valor: R$ 177 mil, ou 5% da
mensalidade corrigida. Escrito a caneta, lá está: “Metro – RJ – 11ª
parcela 25/11 – 3.557.032 – 177.000 (Wils) RIM (código de Metrô Rio, segundo a PF).”
O relatório final da polícia mostra que as anotações à mão, ao lado dos
depósitos, eram o padrão usado para identificar os destinatários dos
recursos pagos pela Camargo Corrêa.
A PF encontrou ainda, na casa de Bianchi, uma tabela intitulada
“Atualização monetária – Parcelas da Dívida Metrô Rio de Janeiro”. O
documento detalha cada parcela, a data de pagamento e o valor corrigido.
Nas anotações atribuídas a Bianchi, há uma ligeira divergência do valor
da tabela e do acordo, para calcular os 5% destinados a Wilson Carlos.
Trata-se do terceiro pagamento, em 25 de março de 2008. Em vez de R$
3.330.000, está escrito apenas R$ 3.300.000, com R$ 30 mil a menos. Com
isso, os “5%” atribuídos ao “Secret. C.C. Wilson” caem a R$ 165.000. Em
maio, em vez de R$ 3.330.000, há um acréscimo de R$ 20 mil. Lá está
anotado R$ 3,35 milhões, separando os R$ 167.500 destinados a “Wilson”,
cujo nome é grafado à mão, ao lado de “5ª parcela: pagto 26/05 – R$
3.350.000,00 – 5% – R$ 167.500,00”. Mais dois repasses dos 5% relativos à
“dívida do metrô” aparecem nas tabelas atribuídas a Bianchi. Em de
janeiro e em dezembro de 2008. Nos dois casos, não há a identificação do
receptor. O primeiro é de R$ 167.500, e o de dezembro, de R$ 177.000.
O cruzamento de dados obtidos nas casas de Bianchi e do doleiro Kurt
Paul Pickel atingiu outro nome próximo do governador Cabral. Amigo de
adolescência e marido de uma prima de Cabral, Carlos Emanuel Miranda é
sócio do governador na SCF Comunicação e Participações Ltda., com 5% das
ações, desde 2004. Segundo a PF escreveu num dos relatórios da Castelo
de Areia, Miranda é o “provável beneficiário” de depósitos da Camargo
Corrêa no exterior. Num e-mail de 9 de fevereiro de 2009, ele é citado
como o destinatário de uma ordem de pagamento de R$ 177 mil. Além do
nome “Carlos Miranda”, aparecem dois números de telefone do Rio,
associados ao codinome “avestruz”. “Entregue por favor: reais 177.000 –
para carlos miranda 021.7831-2421 ou 2511.7877 cod. = avestruz (entrega
em são paulo)”, diz a mensagem.
A PF afirma que “a linha 2511-7877 está em nome de Carlos Emanuel de
Carvalho Miranda”. Dados como endereço e CPF correspondem exatamente aos
do sócio de Cabral. Em mais uma notável coincidência, os R$ 177 mil
equivalem a 5% de R$ 3,56 milhões, valor das últimas parcelas que a
Camargo Corrêa tinha a receber do Metrô Rio, segundo o contrato.
Registrada em nome de Miranda, a linha 021 2511-7877 já pertenceu ao
escritório político de Cabral e à SCF Comunicação e Participações Ltda.,
a empresa do governador com Miranda, sediada à Rua Ataulfo de Paiva, no
Leblon.
Segundo a polícia, Miranda, identificado pelo codinome “avestruz”, foi
destinatário de mais três depósitos no exterior, em dólares. Há
referência a “avestruz”em duas ordens de transferência internacional de
US$ 103.395, para bancos nos Estados Unidos e na China, de 8 de julho de
2008, encontradas na casa de Pietro Bianchi. Na segunda ordem – que
cancela a primeira –, está anotada a sigla “RIM (código de Metrô Rio, segundo a PF)
167.500”, com caneta azul. Logo abaixo, está escrito em vermelho:
“AVESTRUZ 103.395”. Os US$ 103.395 correspondem a exatos R$ 167.500 –
convertidos ao câmbio de R$ 1,62, citado por Pickel em interceptação
telefônica –, ou 5% da parcela paga em 27 de junho pelo Metrô Rio à
Camargo Corrêa.
Segundo a PF, a proximidade entre Wilson Carlos e Miranda é tanta que,
em alguns casos, há dúvida sobre quem recebeu o dinheiro. É o que ocorre
na 11ª parcela do pagamento do Metrô. O relatório da PF afirma: “Os
documentos retratam o valor de R$ 177.000 relacionado à obra do METRÔ do
RIO DE JANEIRO. O primeiro manuscrito indica que o pagamento estaria
relacionado a ‘WILS’, conforme já visto anteriormente, possivelmente
(...) WILSON CARLOS CORDEIRO DA SILVA CARVALHO, secretário de governo do
Estado do RJ. Contudo, nos documentos apreendidos na residência do
doleiro KURT PAUL PICKEL, há menção a pagamento de R$ 177.520 ao bicho
‘AVESTRUZ’. Desta informação foi possível identificar que o provável
beneficiário de tal pagamento seria CARLOS EMANUEL DE CARVALHO MIRANDA”.
Havia tantos indícios contra Wilson Carlos que a PF pediu a instauração
de um inquérito policial específico contra ele, para apurar se houve
corrupção passiva e ativa.
A renovação da concessão do Metrô Rio foi um ótimo negócio para a
Opportrans, uma parceria montada pelo Opportunity, do banqueiro Daniel
Dantas, com o Citibank. Onze meses antes, em janeiro de 2007, início da
gestão Cabral, o Metrô Rio contratara o escritório Coelho, Ancelmo
& Dourados Advogados, do qual era sócia a mulher de Cabral, Adriana
Ancelmo. Com o acordo, a Opportrans manteve os direitos sobre a
concessão até 2038. Também ficou dispensada de pagar a outorga – pela
qual desembolsara R$ 281,7 milhões, em 1997, o equivalente a R$ 718
milhões, em 2007 –, em troca de investir “a cifra aproximada de R$ 1
bilhão”. Apenas um ano e três dias depois do acordo, valorizado pela
permissão de exploração agora de 30 anos – em vez dos dez anos que
faltavam –, o consórcio foi vendido por R$ 995,7 milhões para a Invepar,
grupo integrado pela construtora OAS e pelos fundos de pensão dos
funcionários do Banco do Brasil (Previ) e da Petrobras (Petros). A
Procuradoria-Geral do Estado se opôs à prorrogação naqueles termos. O
parecer não foi levado em conta.
De acordo com a assessoria de imprensa da Camargo Corrêa, o acordo
triangular com o Estado e o Metrô Rio “foi homologado pela Justiça, que
já havia determinado a penhora para pagamento da dívida reconhecida em
valor superior”. A assessoria ressaltou que o STJ suspendeu o processo
da Castelo de Areia e anulou todas as provas obtidas pela PF.
O governo do Rio afirmou que o secretário Wilson Carlos “jamais recebeu
dinheiro desse ou de qualquer outro acordo que envolva o Estado e nunca
teve conta no exterior”. O núcleo de comunicação do Estado afirma que
“essa ilação de que 5% do valor do acordo teriam sido depositados em
contas particulares no exterior é absurda e destituída de qualquer
fundamento” e que “o Estado ou o secretário Wilson Carlos jamais foram
intimados a se manifestar sobre tal disparate”. De acordo com o governo,
Carlos Miranda foi sócio de Cabral “em uma empresa que deixou de operar
há mais de sete anos e já foi extinta”. “Não vemos como ele possa ter
se beneficiado do acordo entre o Estado e a empresa Camargo Corrêa.”
Carlos Miranda foi procurado por ÉPOCA em 16 números de telefones
diferentes e não foi encontrado.
O recurso dos procuradores do MPF está no STF, nas mãos do relator Luiz
Roberto Barroso. Sua assessoria diz que o caso está “em análise” e
ainda não há data para seu julgamento. Se o processo for reaberto, a
Procuradoria-Geral da República terá a oportunidade de aferir se a
Castelo de Areia trouxe à tona mais do que denúncias anônimas vazias.