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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Novos documentos fazem renascer denúncias contra aliados de Sérgio Cabral

Era uma terça-feira. Aparentemente, seria mais um dia normal na Camargo Corrêa, um dos maiores grupos empresariais brasileiros, com 58 mil funcionários espalhados pelo país e pelo mundo. Mas aquele 25 de março de 2009 não foi um dia comum. Tinha tudo para ser lembrado como o início de um dos mais rumorosos casos de promiscuidade no Brasil, entre uma empreiteira e partidos políticos. Naquela manhã, 40 policiais federais varejaram o edifício sede da Camargo Corrêa, em São Paulo, e também casas e escritórios de funcionários e lobistas, suspeitos de operar um esquema de lavagem de dinheiro para a construtora. Na ação, batizada de Castelo de Areia, os policiais apreenderam uma série de documentos que, segundo eles, traziam indícios de transferências de recursos para políticos de diversos matizes, em contas no Brasil e no exterior. Entre os citados na papelada estavam nomes de PMDB, PT, PSDB, PR, DEM, PCdoB, PSB e PP. A operação que prometia dinamitar gabinetes em todo o país acabou desmontada no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Sob a alegação de que a ação da PF se baseara numa denúncia anônima, os ministros do STJ suspenderam o processo e anularam as provas recolhidas pela Polícia Federal.

O Ministério Público Federal discordou da decisão e, em agosto de 2012, recorreu ao Supremo Tribunal Federal. Em dezembro do ano passado, a subprocuradora-geral da República Maria das Mercês Aras, que atuou no caso, recebeu um conjunto de documentos que não integravam o processo original da Castelo de Areia. Por considerá-los relevantes, ela remeteu os documentos a Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República, que representa o Ministério Público no STF. Empossado em setembro, Janot disse a sua equipe que tem interesse especial na Castelo de Areia. Segundo os procuradores envolvidos no caso, tais documentos, a que ÉPOCA teve acesso, podem levar à reabertura da Castelo de Areia. Os mesmos documentos causaram apreensão no grupo próximo ao governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.

O cruzamento dos novos documentos com os relatórios anteriores da Castelo de Areia revela os bastidores da renovação da concessão do Metrô Rio, sem licitação, assinada por Sérgio Cabral no final do primeiro ano de seu governo, em 2007. Por meio de um Instrumento Particular de Transação, a então concessionária do metrô, a Opportrans, quitou uma antiga dívida do Estado com a Camargo Corrêa, por obras não concluídas de expansão do metrô nos anos 1980. A Camargo Corrêa, em contrapartida, encerrou cinco ações judiciais contra o Estado. O valor da dívida foi estimado em R$ 40 milhões. Em troca, o governo antecipou em dez anos a renovação do contrato da Opportrans e ainda a estendeu por mais 20 anos, até 2038. Esse acordo foi publicado no Diário Oficial, de forma discreta, no dia 31 de dezembro. Há uma incrível sucessão de coincidências entre as datas e os valores dos pagamentos estipulados no acordo e os documentos apreendidos na Castelo de Areia.
Wilson Carlos de carvalho e Carlos Emanuel Miranda (Foto: Michel Filho/Agência O Globo e reprodução)
Abreviaturas e nomes em código (Foto: ÉPOCA)
Em anotações manuscritas e e-mails recolhidos na ação da PF, aparecem anotações que a polícia identifica como referências a Wilson Carlos de Carvalho, secretário estadual de Governo há sete anos e coordenador das últimas quatro campanhas de Cabral, e a Carlos Emanuel Miranda, sócio de Cabral na SCF Comunicação e Participações Ltda. até setembro de 2013, quando a empresa foi extinta. Os dois, segundo a PF, aparecem como beneficiários de pagamentos suspeitos no Brasil e no exterior, relativos à “dívida do Metrô Rio”. Os valores descritos nesses manuscritos e mensagens eletrônicas correspondem exatamente a 5% dos valores pagos pela Opportrans à Camargo Corrêa que constam do contrato publicado no Diário Oficial. As datas também. Em 2010, a Camargo Corrêa foi a principal doadora na reeleição de Cabral, com R$ 1 milhão.

O contrato assinado entre o governo do Estado, Opportrans e Camargo Corrêa estipulou a dívida com a construtora em R$ 40 milhões. Segundo o contrato, ela deveria ser paga em 12 parcelas mensais, a partir de 27 de janeiro de 2008. As duas primeiras parcelas seriam de R$ 3,35 milhões, e as demais dez de R$ 3,33 milhões. Do sétimo mês em diante, o valor sofreria correção monetária. A correspondência é impressionante com tabelas e e-mails apreendidos nos escritórios e residências do ex-vice-presidente e então consultor da Camargo Corrêa, Pietro Bianchi – apontado pela PF como o principal operador do esquema –, e do doleiro Kurt Pickel, acusado de enviar o dinheiro dos beneficiários ao exterior. Ambos foram presos na operação.

Nos e-mails e manuscritos de Bianchi, aparecem menções a percentagens destinadas a nomes em código e abreviaturas. Segundo a PF, Wilson Carlos era identificado nas anotações como “Secret. Gov Wilson”, “Secret. Wil”, “Secret. C.C. Wilson”, “Wilson” e “Wils”. Bianchi costumava usar nomes de animais para se referir a alguns destinatários do dinheiro. Miranda, o ex-sócio de Cabral, aparece uma vez como “Carlos Miranda” e outras três vezes, segundo a PF, como “avestruz”.

As anotações referentes aos dois sempre vinham relacionadas à “dívida do Metrô RJ” e a um valor em reais, seguido de um cálculo de 5% desse valor. Os 5% aparecem com um código. Por exemplo: “R$ 3,35 milhões, 5% – R$ 167.500 – Secret.Gov.Wilson”. De acordo com a PF, esses 5% eram o quinhão devido a Wilson Carlos ou a Carlos Miranda. Na época da apreensão, a PF desconhecia o acordo para o pagamento da dívida do metrô, apesar de ele ter sido publicado no Diário Oficial. Por isso, não pôde estabelecer no inquérito uma relação entre essas anotações e os pagamentos feitos pela Opportrans à Camargo Corrêa.

As coincidências entre os valores do acordo e os 5% atribuídos a Wilson Carlos e a Carlos Miranda se tornam mais impressionantes a cada pagamento. O primeiro repasse associado a Wilson Carlos, de R$ 167.500, em 25 de fevereiro de 2008, corresponde a precisamente 5% dos 3,35 milhões pagos pela Opportrans à Camargo Corrêa naquele mês. Na anotação atribuída a Bianchi, esta´escrito: “2ª parcela – R$ 3.350.000,00 – 25/02 –5% – 167.500,00 Secret. Gov. Wilson”. A quarta parcela devida pelo Metrô Rio à Camargo Corrêa , no dia 27 de abril, era de R$ 3,33 milhões. Os R$ 166.500 destinados à “Secret. Wil” correspondem exatamente a 5% disso. Nas anotações, se lê: “Metrô RJ 4ª parcela – 27/04/08 – R$ 3,33 milhões – 5% R$ 166.500 – Secret. Wil”.

Quando as mensalidades pagas pelo metrô à Camargo Corrêa foram reajustadas para R$ 3,56 milhões, a partir de julho de 2008, como previa o acordo, os valores continuam a coincidir. Em 25 de novembro, a abreviatura que, segundo a polícia, corresponde ao nome de Wilson Carlos aparece anotado novamente, ao lado do novo valor: R$ 177 mil, ou 5% da mensalidade corrigida. Escrito a caneta, lá está: “Metro – RJ – 11ª parcela 25/11 – 3.557.032 – 177.000 (Wils) RIM (código de Metrô Rio, segundo a PF).” O relatório final da polícia mostra que as anotações à mão, ao lado dos depósitos, eram o padrão usado para identificar os destinatários dos recursos pagos pela Camargo Corrêa.

Um jogo de  ganha-ganha (Foto: ÉPOCA)

A PF encontrou ainda, na casa de Bianchi, uma tabela intitulada “Atualização monetária – Parcelas da Dívida Metrô Rio de Janeiro”. O documento detalha cada parcela, a data de pagamento e o valor corrigido. Nas anotações atribuídas a Bianchi, há uma ligeira divergência do valor da tabela e do acordo, para calcular os 5% destinados a Wilson Carlos. Trata-se do terceiro pagamento, em 25 de março de 2008. Em vez de R$ 3.330.000, está escrito apenas R$ 3.300.000, com R$ 30 mil a menos. Com isso, os “5%” atribuídos ao “Secret. C.C. Wilson” caem a R$ 165.000. Em maio, em vez de R$ 3.330.000, há um acréscimo de R$ 20 mil. Lá está anotado R$ 3,35 milhões, separando os R$ 167.500 destinados a “Wilson”, cujo nome é grafado à mão, ao lado de “5ª parcela: pagto 26/05 – R$ 3.350.000,00 – 5% – R$ 167.500,00”. Mais dois repasses dos 5% relativos à “dívida do metrô” aparecem nas tabelas atribuídas a Bianchi. Em de janeiro e em dezembro de 2008. Nos dois casos, não há a identificação do receptor. O primeiro é de R$ 167.500, e o de dezembro, de R$ 177.000.

O cruzamento de dados obtidos nas casas de Bianchi e do doleiro Kurt Paul Pickel atingiu outro nome próximo do governador Cabral. Amigo de adolescência e marido de uma prima de Cabral, Carlos Emanuel Miranda é sócio do governador na SCF Comunicação e Participações Ltda., com 5% das ações, desde 2004. Segundo a PF escreveu num dos relatórios da Castelo de Areia, Miranda é o “provável beneficiário” de depósitos da Camargo Corrêa no exterior. Num e-mail de 9 de fevereiro de 2009, ele é citado como o destinatário de uma ordem de pagamento de R$ 177 mil. Além do nome “Carlos Miranda”, aparecem dois números de telefone do Rio, associados ao codinome “avestruz”. “Entregue por favor: reais 177.000 – para carlos miranda 021.7831-2421 ou 2511.7877 cod. = avestruz (entrega em são paulo)”, diz a mensagem.

A PF afirma que “a linha 2511-7877 está em nome de Carlos Emanuel de Carvalho Miranda”. Dados como endereço e CPF correspondem exatamente aos do sócio de Cabral. Em mais uma notável coincidência, os R$ 177 mil equivalem a 5% de R$ 3,56 milhões, valor das últimas parcelas que a Camargo Corrêa tinha a receber do Metrô Rio, segundo o contrato. Registrada em nome de Miranda, a linha 021 2511-7877 já pertenceu ao escritório político de Cabral e à SCF Comunicação e Participações Ltda., a empresa do governador com Miranda, sediada à Rua Ataulfo de Paiva, no Leblon.

Segundo a polícia, Miranda, identificado pelo codinome “avestruz”, foi destinatário de mais três depósitos no exterior, em dólares. Há referência a “avestruz”em duas ordens de transferência internacional de US$ 103.395, para bancos nos Estados Unidos e na China, de 8 de julho de 2008, encontradas na casa de Pietro Bianchi. Na segunda ordem – que cancela a primeira –, está anotada a sigla “RIM (código de Metrô Rio, segundo a PF) 167.500”, com caneta azul. Logo abaixo, está escrito em vermelho: “AVESTRUZ 103.395”. Os US$ 103.395 correspondem a exatos R$ 167.500 – convertidos ao câmbio de R$ 1,62, citado por Pickel em interceptação telefônica –, ou 5% da parcela paga em 27 de junho pelo Metrô Rio à Camargo Corrêa.

Segundo a PF, a proximidade entre Wilson Carlos e Miranda é tanta que, em alguns casos, há dúvida sobre quem recebeu o dinheiro. É o que ocorre na 11ª parcela do pagamento do Metrô. O relatório da PF afirma: “Os documentos retratam o valor de R$ 177.000 relacionado à obra do METRÔ do RIO DE JANEIRO. O primeiro manuscrito indica que o pagamento estaria relacionado a ‘WILS’, conforme já visto anteriormente, possivelmente (...) WILSON CARLOS CORDEIRO DA SILVA CARVALHO, secretário de governo do Estado do RJ. Contudo, nos documentos apreendidos na residência do doleiro KURT PAUL PICKEL, há menção a pagamento de R$ 177.520 ao bicho ‘AVESTRUZ’. Desta informação foi possível identificar que o provável beneficiário de tal pagamento seria CARLOS EMANUEL DE CARVALHO MIRANDA”. Havia tantos indícios contra Wilson Carlos que a PF pediu a instauração de um inquérito policial específico contra ele, para apurar se houve corrupção passiva e ativa.

A renovação da concessão do Metrô Rio foi um ótimo negócio para a Opportrans, uma parceria montada pelo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, com o Citibank. Onze meses antes, em janeiro de 2007, início da gestão Cabral, o Metrô Rio contratara o escritório Coe­lho, Ancelmo & Dourados Advogados, do qual era sócia a mulher de Cabral, Adriana Ancelmo. Com o acordo, a Opportrans manteve os direitos sobre a concessão até 2038. Também ficou dispensada de pagar a outorga – pela qual desembolsara R$ 281,7 milhões, em 1997, o equivalente a R$ 718 milhões, em 2007 –, em troca de investir “a cifra aproximada de R$ 1 bilhão”. Apenas um ano e três dias depois do acordo, valorizado pela permissão de exploração agora de 30 anos – em vez dos dez anos que faltavam –, o consórcio foi vendido por R$ 995,7 milhões para a Invepar, grupo integrado pela construtora OAS e pelos fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil (Previ) e da Petrobras (Petros). A Procuradoria-Geral do Estado se opôs à prorrogação naqueles termos. O parecer não foi levado em conta.

De acordo com a assessoria de imprensa da Camargo Corrêa, o acordo triangular com o Estado e o Metrô Rio “foi homologado pela Justiça, que já havia determinado a penhora para pagamento da dívida reconhecida em valor superior”. A assessoria ressaltou que o STJ suspendeu o processo da Castelo de Areia e anulou todas as provas obtidas pela PF.

O governo do Rio afirmou que o secretário Wilson Carlos “jamais recebeu dinheiro desse ou de qualquer outro acordo que envolva o Estado e nunca teve conta no exterior”. O núcleo de comunicação do Estado afirma que “essa ilação de que 5% do valor do acordo teriam sido depositados em contas particulares no exterior é absurda e destituída de qualquer fundamento” e que “o Estado ou o secretário Wilson Carlos jamais foram intimados a se manifestar sobre tal disparate”. De acordo com o governo, Carlos Miranda foi sócio de Cabral “em uma empresa que deixou de operar há mais de sete anos e já foi extinta”. “Não vemos como ele possa ter se beneficiado do acordo entre o Estado e a empresa Camargo Corrêa.” Carlos Miranda foi procurado por ÉPOCA em 16 números de telefones diferentes e não foi encontrado.

O recurso dos procuradores do MPF está no STF, nas mãos do relator Luiz Roberto Barroso. Sua assessoria diz que o caso está “em análise” e ainda não há data para seu julgamento. Se o processo for reaberto, a Procuradoria-Geral da República terá a oportunidade de aferir se a Castelo de Areia trouxe à tona mais do que denúncias anônimas vazias.
As coincidências (Foto: ÉPOCA)