“Eu não me sinto confortável”, disse a desembargadora Marianna Fux, entre sorrisos constrangidos, na sessão de uma das câmaras especializadas em direito do consumidor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Era a sua vez de votar, mas Fux, novata na corte, estava insegura. “Acho que vou pedir vistas”, disse aos colegas, longe do microfone.
Tratava-se do caso de uma senhora cega que pedia indenização de uma instituição de ensino por não ter conseguido fazer o vestibular para o curso de direito. Segundo ela, não havia na faculdade esquema para deficientes visuais. Os funcionários teriam prometido realizar outra prova especial para ela em nova data, nunca marcada. Mas a idosa já perdera a ação na primeira instância, e a apelação agora em julgamento estava para ser rejeitada.
Lendo seu voto, a relatora sustentava que a faculdade não poderia ser responsabilizada pelo dano porque a candidata desistira voluntariamente do concurso. Ao notar a indecisão da nova colega, abandonou a leitura e passou a explicar, de maneira mais informal, o raciocínio que percorrera para chegar à conclusão. Fux ouvia tudo com atenção. Ao final, tomou coragem: “Acompanho a relatora.”
Ao longo de quatro horas, naquela manhã de março, os desembargadores da 25a Câmara Cível despacharam 170 processos. Foi a segunda sessão de trabalho de Marianna Fux depois de empossada. Não relatou nem revisou nenhum caso, mas se manteve atenta, ora com os olhos vidrados na tela do computador, lendo os processos, ora distribuindo sorrisos e balinhas. Foi acolhida com simpatia pelos colegas, que lhe davam dicas e a avisavam para prestar atenção quando o julgamento demandasse a adoção de alguma nova regra do Código de Processo Civil, reformulado recentemente sob o comando do pai da desembargadora, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux.
O clima amigável na corte fluminense contrasta radicalmente com a controvérsia que cercou o nome de Marianna Fux desde o início de 2013, quando seu pai começou a comunicar as autoridades de que a filha se candidataria a uma das vagas reservadas para os advogados no TJ. Por lei, um quinto dos desembargadores deve ser escolhido entre profissionais do direito, num processo conduzido pela Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB. Cabe à Ordem apresentar uma lista de seis nomes, que em seguida os desembargadores reduzem a três, em votação no TJ. A escolha final é do governador do estado, que nomeia um dos três mais votados.
O primeiro a ser informado de que Fux pretendia colocar a filha no tribunal foi o então governador Sérgio Cabral, ele mesmo um cabo eleitoral de Fux-pai em sua disputa pela cadeira no Supremo, em 2011. A Cabral, Fux justificou sua decisão: “Eu não tenho nada para deixar para ela.” Pouco depois, o próprio governador daria a notícia ao então presidente da OAB, Wadih Damous. “O Cabral avisou: ‘Vai cair esse abacaxi no colo de vocês’”, lembrou Damous.
Casado com uma advogada, Cabral sabia que a escolha de Fux-filha provocaria reações no meio jurídico. A vaga no TJ, com salário-base de 30 400 reais (quase o teto do funcionalismo público), mordomias como motorista, auxílio-moradia e benefícios que não raro elevam os rendimentos para mais de 60 mil reais, é ferozmente disputada entre os advogados, que exibem os currículos em campanhas aguerridas e repletas de conchavos. A atuação de um ministro do Supremo certamente desequilibraria o jogo a favor da filha, então uma profissional de 32 anos que pouca gente conhecia.
Dali em diante, todos os passos de Fux-pai e Fux-filha passaram a ser encarados como parte de uma campanha. Por exemplo, o casamento de Marianna com o colega Hercílio Binato, filho de um desembargador, em outubro de 2013. A festa para mil convidados, no Museu de Arte Moderna do Rio, foi uma demonstração de amor paternal. Diante de uma plateia formada por ministros do Supremo, desembargadores, juízes e advogados das mais prestigiadas bancas, o pai da noiva subiu ao palco e cantou uma música feita em parceria com o compositor Michael Sullivan. Flor Marianna, o amor me chama e Flor do amor é Marianna, diziam alguns versos.
Meses depois, em maio de 2014, Fux recebeu desembargadores, ministros de cortes superiores e o governador Luiz Fernando Pezão em um almoço na serra de Petrópolis. Vários convidados chegaram de helicóptero. Por essa época, multiplicaram-se os relatos de telefonemas de Fux a bancas e gabinetes de magistrados e políticos pedindo apoio para a filha. Era, segundo diziam alguns deles, “um campanhão” de porte inédito para uma vaga no TJ.
A piauí conversou com quatro advogados que receberam ligações do ministro do Supremo em 2014. Nas conversas, Fux tratava o caso como questão pessoal, sempre emendando ao pedido frases como “É o sonho dela” ou “É tudo o que posso deixar para ela”. Chegou a mencionar o assalto sofrido pela família em 2003, quando ele e os filhos foram agredidos, amarrados e feitos reféns por bandidos no prédio onde moravam. Segundo Fux, a vaga no TJ seria uma forma de compensar o trauma da filha.
Um dos que receberam uma ligação de Fux foi Wadih Damous, que já havia deixado a presidência da OAB e estava em campanha para deputado federal pelo PT. “Expliquei que não estava mais na OAB, mas ele ponderou que eu ainda exercia liderança sobre os conselheiros e disse que precisava da minha ajuda. Falei que não só não me meteria no assunto, como, se pudesse, não votaria na filha dele.”
Juiz desde 1983, ex-desembargador e ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, a segunda corte mais importante do país depois do stf, Luiz Fux é o carioca mais poderoso do mundo do direito. Estão sob sua guarda processos-chave para o Rio e para os magistrados – como a ação que contesta a validade dos auxílios salariais que permitem a 90% dos atuais colegas de Marianna Fux ganhar bem mais do que o teto do funcionalismo público. Em 2012, o então ministro Carlos Ayres Britto julgou inconstitucionais os auxílios e mandou extingui-los, mas Fux pediu vistas e suspendeu a decisão. Até hoje o processo está bem guardado no fundo de sua gaveta no stf – e os auxílios continuam pingando na conta-corrente dos magistrados.
Também em 2012, Fux impediu, por meio de liminar, a votação no Congresso que daria aos estados não produtores de petróleo uma fatia dos royalties, o que prejudicaria imensamente o Rio de Janeiro (até hoje a questão não foi decidida, mas agora está nas mãos da ministra Cármen Lúcia). É Fux, ainda, quem vai julgar o candidato do PMDB à Prefeitura do Rio, o deputado federal Pedro Paulo, acusado de bater na ex-mulher. No Supremo, mais de 5 mil processos esperam uma canetada sua. “Praticamente todo advogado carioca tem algum caso que depende do Fux”, observa um deles.
Guitarrista e faixa preta de jiu-jítsu, o ministro foi um professor popular na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Oferecia churrascos aos alunos e fazia sucesso entre as moças, que o apelidaram de Julio Iglesias, numa referência à cabeleira negra. Sempre bem colocado nos concursos, era liderança natural entre os juízes.
Depois da posse no stf, destacou-se também pela forma como exerce o poder. Nos primeiros meses de 2014, ofereceu-se para fazer parte da banca de doutorado do maior opositor de sua filha na OAB, o vice-presidente Ronaldo Cramer. A tese de Cramer será avaliada agora, em 14 de abril – e Fux integrará a banca. “Antes ele era querido. Hoje, é temido”, resumiu, entre reiterados pedidos de anonimato, um dos advogados a quem Fux procurou em seu “campanhão”.
A oposição à filha de Fux ganhou força assim que foram feitas as inscrições para a vaga. Alguns candidatos – Marianna Fux entre eles – apresentaram documentos insuficientes, e a OAB estendeu o prazo para que providenciassem a papelada. Tais documentos precisavam provar que o pretendente tinha no mínimo dez anos de experiência, apresentando pelo menos cinco petições, pareceres ou relatórios por ano de exercício da profissão. Fux-filha havia entregue apenas uma carta do prestigiado advogado Sergio Bermudes – amigo de seu pai há décadas –, segundo a qual ela realizava consultoria e assessoria em seu escritório desde 2003. Naquela época, questionado sobre a natureza do trabalho, Bermudes disse que a pupila se ocupava de processos sigilosos, e que por isso não haviam sido declarados no pacote da candidatura.
Já em março passado, ele me disse, por telefone, que a principal ocupação da advogada no escritório era a pesquisa. Bermudes informou que a convidara para estagiar porque a conhecia desde os 3 anos de idade. Mas atalhou: “Quando assumo um estagiário, digo uma frase clichê: Não importa o motivo pelo qual você chegou aqui. Para ficar, tem de ter mérito.” Perguntei então qual havia sido o mérito dela. Bermudes começou a gritar: “Você está querendo esculhambar a Marianna! Você está sendo desonesta!!” E desligou o telefone sem se despedir.
Findo o prazo para a complementação dos documentos, Marianna Fux não havia apresentado trabalhos suficientes para os anos de 2007, 2008, 2009, 2010, 2012 e 2014. Um grupo de 28 conselheiros da OAB pediu a impugnação de sua candidatura, e a celeuma se tornou objeto de notas e reportagens em jornais e revistas. Fux-pai visitou algumas redações. Dizia que a oposição à filha nada mais era do que uma represália do grupo do petista Wadih Damous pelo voto que ele proferira no caso do mensalão, condenando vários quadros do PT. Damous nega que tenha interferido na disputa da OAB.
O clima entre os advogados fluminenses ficou tão tenso que a OAB suspendeu a disputa pela vaga no TJ em agosto de 2014. Na ocasião, o presidente da entidade, Felipe Santa Cruz, disse que pretendia transformar o processo em eleição direta entre os 150 mil advogados do Rio. O projeto das eleições não andou, mas, em fevereiro passado, a seleção para a vaga no TJ foi retomada. Desta vez, num contexto totalmente diferente.
As atenções na OAB estavam voltadas para o impasse em torno do impeachment de Dilma Rousseff, e metade do corpo de conselheiros havia sido renovada. Convocou-se a sessão com apenas dois dias de antecedência – prazo atípico para a situação. O presidente da OAB alegou ter sido necessário acelerar o processo porque o tribunal ameaçava preencher a vaga por conta própria. Em cinco horas, o pedido de impugnação de Marianna Fux foi julgado e descartado. Os candidatos presentes foram sabatinados e a votação foi realizada.
Na sabatina, coube a Marianna responder, por sorteio, à seguinte pergunta: Quem deveria pagar pelos custos das salas dos advogados nos tribunais? Ela recitou: “Pela vez primeira, a Constituição brasileira destinou um capítulo próprio para a advocacia, considerando o advogado essencial à prestação jurisdicional. Sendo assim, entendo que cabe aos tribunais esse encargo.”
Apesar de sete conselheiros terem votado nulo em protesto contra a candidatura de Marianna, ela foi a segunda colocada da lista sêxtupla encaminhada ao tribunal. Teve cinquenta votos. Desses, 29 foram dados por conselheiros novos – um dos quais, inclusive, só votou na filha de Fux. Ao final da sessão, a quase desembargadora desabafou à Folha de S. Paulo: “Foram dois anos e meio de perseguição política, de bullying. Esse aqui é um processo político, mas passei por esta fase. Vamos para a próxima.” (Filha e pai foram procurados pela piauí, mas recusaram-se a dar entrevista.)
No dia 7 de março, os seis nomes da oab foram à votação no Tribunal de Justiça. Grande amigo de Fux-pai, o ex-presidente do tribunal, Luiz Zveiter, defendeu o voto em Fux-filha e em outros dois candidatos. Também entre os magistrados havia quem não apoiasse os Fux – em protesto, 25 faltaram à sessão. O desembargador Siro Darlan, amigo de Luiz Fux há cinquenta anos, compareceu, mas não apoiou a moça. “Tenho o maior carinho por Fux, que é brilhante e honra a nossa carreira. Mas, se eu fosse ele, faria com que meus filhos seguissem o meu exemplo. Trata-se de um cargo republicano. Não é algo que se possa dar a alguém, como um presente.”
O mal-estar, porém, não abalou o triunfo dos Fux. Marianna teve a maior votação da história do tribunal para um candidato a desembargador. Poucas horas depois, a nomeação pelo governador Luiz Fernando Pezão estava no Diário Oficial do estado. Em duas semanas, um grupo de deputados estaduais aprovou na Assembleia Legislativa a proposta de conceder à desembargadora a mais alta comenda do Parlamento fluminense, a Medalha Tiradentes – por sua “enorme contribuição ao nosso estado, através de seu talento e capacidade jurídica”.
Entre a nomeação e a homenagem da Assembleia, Luiz Fux esteve no centro de um almoço regado a vinhos no restaurante Antiquarius, no Leblon, que adentrou a tarde de sexta-feira. Um dos comensais era Zveiter, que logo ao chegar deixou claro o motivo da comemoração: “Aí está o pai da desembargadora!” Recebeu de volta um carinhoso abraço.
REVISTA PIAUÍ