Desde que deixou o cargo de governador do Rio, há pouco mais de dois anos, Sérgio Cabral tornou-se um político recluso. Suas aparições públicas são raras e nada se sabe sobre como passa seus dias. Na época em que começou seu processo de submersão, a súbita discrição era justificada, por ele, pela necessidade de deixar que seu então vice, Luiz Fernando Pezão, se projetasse como candidato à sucessão. Mas havia outros motivos para a saída de cena. Com alto índice de rejeição – dois em cada cinco fluminenses achavam seu governo ruim ou péssimo --Cabral tentava preservar o que sobrara de sua imagem, desgastada por acusações como de gastos excessivos nas obras da Copa, uso particular do helicóptero oficial e favorecimento a empresários, em especial Fernando Cavendish, ex-dono da Construtora Delta. Um conjunto de fotos e vídeos de uma viagem oficial a Paris, em 2011, no qual Cabral aparecia, junto com secretários e com Cavendish, ampliou a rejeição ao governador. Uma das fotos, a mais célebre, mostra Cavendish e parte da equipe do governador posando nas ruas de Paris com guardanapos na cabeça.
Mesmo recluso, Cabral não tem escapado de levar alguns sustos da Operação Lava Jato. Ele e Pezão são investigados em inquérito que corre no STJ, sob suspeita de recebimento de propina do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa -- eles negam as acusações. Agora, mais um fantasma do passado volta a pairar sobre o ex-governador. Em delações premiadas as quais ÉPOCA teve acesso, dois ex-dirigentes do grupo Andrade Gutierrez contam como Cabral exigiupropina das empresas do consórcio responsável pela reforma Maracanã para a Copa do Mundo. A obra, orçada inicialmente em R$ 720 milhões, custou, ao final, pouco mais de R$ 1,2 bilhão. Da trama revelada pelos dois delatores fariam parte, além de Cabral, dois membros da “gangue do guardanapo”—epíteto criado pelo ex-governador Anthony Garotinho, divulgador das imagens, pelo qual ficaram conhecidos os participantes da farra parisiense. Um deles, Cavendish.
Os depoimentos foram prestados no final de março por Rogério Nora de Sá e Clóvis Peixoto Primo, ex-presidentes de empresas do grupo Andrade Gutierrez. Aos procuradores da força tarefa da Lava Jato, os dois descreveram como o ex-governador Cabral cobrou pagamento de 5% do valor total do contrato para permitir que a Andrade Gutierrez se associasse às empreiteiras Odebrecht e Delta no consórcio que disputaria a reforma do Maracanã, em 2009. Não contaram, no entanto, quanto teria sido efetivamente pago pelas empresas. Hoje, a Andrade Gutierrez publicou anúncios nos principais jornais do país pedindo "desculpas" por ter se envolvido nos esquemas de corrupção descobertos pela Lava Jato. A empreiteira fez acordo de leniência com a Controladoria Geral da União e pagará R$ 1 bilhão em multas, para voltar a participar de obras públicas.
Os delatores contaram que a Andrade Gutierrez se interessou pela obra no Rio de Janeiro depois de desistir da licitação para as obras do Mineirão, que seria feita no formato de Parceria Público-Privada. Naquela época, afirmam, já existia um acerto informal para que Odebrecht e Delta disputassem em consórcio. Nora de Sá conta que conseguiu uma reunião com Cabral para tratar da inclusão da Andrade Gutierrez no grupo.
Segundo os delatores, Cabral concordou com a entrada da Andrade Gutierrez, mas determinou que a empresa se acertasse com a Odebrecht os percentuais de participação de cada uma no consórcio, já que os 30% da Delta não poderiam ser modificados. Nora de Sá relata ter demonstrado contrariedade com a exigência de Cabral. “O então governador Cabral, embora fosse a posição do depoente que a Delta não deveria participar por falta de capacidade técnica, disse que não permitiria a exclusão da Delta”, diz trecho da delação. Segundo Nora de Sá, o governador alegou que “tinha consideração pela empresa e gostava dela”.
No encontro, relatam Nora de Sá e Primo, Cabral deixou claro que havia um pedágio a ser pago pela “bondade”: “A conversa foi franca, mas o pedido de propina foi veiculado com o uso de outra palavra, que pelo que o depoente se recorda foi contribuição”, diz trecho da delação de Nora. O preço foi, então, acertado: “Que Rogério Nora complementou então informando ao depoente [Clóvis] que Sérgio Cabral solicitara 5% do valor da obra como propina, sem o que não se viabilizaria a participação da AG”, relatou Primo. Mesmo contrariado com a possibilidade de ter de trabalhar com a Delta, por imposição de Cabral, Nora de Sá procurou Benedicto Júnior, preso na23ª fase da Operação Lava Jato. Foi na casa de Júnior que, em março passado, a PF encontrou uma lista com mais de 200 políticos, relacionados a valores, em uma planilha. Cabral é um dos nomes.
Os pagamentos, de acordo com as delações, começaram em 2010 e foram feitas “parte em espécie, parte em doações oficiais”. A “operacionalização” coube a outro diretor da Andrade Gutierrez,Alberto Quintaes – que tinha participado da reunião com Cabral –, com a ajuda de Primo. Os pagamentos, contam os ex-dirigentes, ocorreram somente até 2011. Segundo eles, porque depois dessa data a obra começou a dar prejuízo. Nenhum dos dois informou aos procuradores, no entanto, quanto foi desembolsado. De acordo com informações do sites de Transparência do governo do Rio e da União, o estado pagou R$ 150 milhões entre 2010 e 2011 ao consórcio. Desses, R$ 80 milhões foram repassados pelo BNDES, de um total de R$ 400 milhões financiados.
Os delatores contaram que, depois da reunião com Cabral, o então secretário de governo, Wilson Carlos Carvalho, outro integrante da “gangue do guardanapo”, tornou-se o interlocutor do governador no grupo. Segundo Nora, quem recebia o dinheiro em espécie era Carlos Emanuel Miranda. A relação de Cabral com Miranda é antiga, da adolescência. Ele é casado com uma prima do ex-governador. Conforme revelou ÉPOCA em 2013, os dois foram sócios em uma empresa de comunicação, e o governo do Rio cuidou rapidamente da pavimentação do acesso a um sítio que Miranda comprara em Paraíba do Sul, interior do estado. Segundo outra reportagem de ÉPOCA, de 2014, Carvalho e Miranda apareceram também em documentos com os quais a Procuradoria da República queria retomar a Operação Castelo de Areia, que investigou, em 2008, os negócios da empreiteira Camargo Corrêa. Segundo a Polícia Federal, Carvalho e Miranda teriam recebido propina no processo derenovação da concessão do metrô do Rio naquele ano, dez antes de a concessão vencer.
Na contabilidade da Andrade Gutierrez, os pagamentos da propina pelo Maracanã se justificavam ou por meio de contratos de prestação de serviços fictícios, ou com valores artificialmente inflados. Um dos “especialistas” a quem a AG recorria é Adir Assad, dono de uma série de empresas fantasmas, personagem conhecido no mundo das propinas em obras públicas. Antigo fornecedor da Delta, Assad foi condenado, em setembro do ano passado, pelo juiz Sérgio Moro, por ser um dos operadores do esquema de fraude, desvio de dinheiro e pagamento de propina do petrolão. Na denúncia, o Ministério Público Federal citou o suposto envolvimento de Assad no desvio de R$ 421 milhões por meio de contratos superfaturados da Delta em obras públicas, investigado pela Polícia Federal nas operações Vegas e Monte Carlo. Atualmente, Assad cumpre prisão domiciliar.
A Delta acabou abandonando as obras do Maracanã em 2012, quando a Polícia Federal começou a investigar suspeitas de seu envolvimento no esquema de corrupção do contraventor Carlinhos Cachoeira, alvo de uma CPI em 2012. Sua parte na obra acabou absorvida pela Odebrecht.
Procurados, Cabral, Miranda, Carvalho e Cavendish comentaram o assunto por meio de notas. Cabral disse que manteve “apenas relações institucionais” com a Andrade Gutierrez, e que “jamais interferiu em quaisquer processos licitatórios de obras em seu governo nem tampouco solicitou benefício financeiro próprio ou para campanha eleitoral em decorrência da realização delas”. Afirma, por fim, ter pautado sua gestão “pela autonomia dos secretárias nas respectivas pastas, assim como nos órgãos, nas autarquias empresas e institutos subordinados às secretarias”.
Carlos Miranda disse desconhecer “completamente o assunto mencionado”. “Nego veementemente qualquer envolvimento do meu nome com essa história”. Afirmou, ainda, que nunca recebeu dinheiro da Andrade Gutierrez ou de qualquer outra empreiteira e que nunca participou da gestão do executivo estadual. Em relação às investigações sobre as suspeitas de recebimento de dinheiro por conta da renovação da concessão do metrô, diz que nunca recebeu benefícios financeiros ou tratou de assuntos relacionados ao poder executivo do estado.
O ex-secretário de governo de Cabral Wilson Carlos Carvalho disse que “nunca” teve conhecimento de tais acusações e que nega “com veemência as acusações improcedentes”. Em relação às investigações sobre o metrô, diz que jamais tratou do assunto e que também nunca foi chamado a prestar esclarecimento a respeito.
A assessoria de imprensa de Cavendish e da Delta informou que o empresário negou que a Delta tivesse entrado no consórcio do Maracanã por influência política e que, nas obras de que a empreiteira participou, foi escolhida por “reunir elevada expertise, além de apresentar atestados de capacidade técnica que atendiam às exigências de cada edital”. Afirmou que Cavendish negou ter tido conhecimento do pedido de Cabral e da resistência da Andrade Gutierrez para que integrasse o consórcio e também ter tido negócios com Adir Assad.
Os advogados Daniel Muller Martins, de Rogério Nora, Miguel Pereira Neto, de Adir Assad, e Ilcelene Bottari, de Clóvis Primo, não comentaram o caso.
A Andrade Gutierrez informou que também não comentaria.