Documentos apreendidos pela polícia em favela do Rio revelam as táticas sujas de uma das maiores milícias da cidade para interferir na eleição municipal
Nas últimas três décadas, as milícias, organizações criminosas lideradas por policiais e ex-policias, vêm se alastrando no Rio de Janeiro sob o olhar complacente das autoridades e à sombra do estado. Elas avançaram sobre os domínios do tráfico, passaram a comandar territórios na cidade e consolidaram seu poder à base do assistencialismo e do medo. Como têm centenas de milhares de pessoas sob seu jugo, essas gangues de farda ganham força em períodos eleitorais, quando são procuradas por candi-
datos em busca de apoio, arbitram sobre quem faz campanha em seu pedaço e lançam nomes egressos de suas próprias fileiras. Desencadeada há três meses, uma operação da Polícia Civil em um dos redutos dessas quadrilhas — a favela Gardênia Azul, na Zona Oeste carioca — escancara os métodos utilizados por elas para fazer valer sua vontade. A recém-concluída investigação, que resultou no processo de número 0027367-8420118190203, reúne um revelador conjunto de documentos, material ao qual VEJA teve acesso.
Em meio à papelada, apreendida no centro de assistência social mantido pelo ex-vereador Cristiano Mathias Girão, surgiu uma carta com data de 25 de outubro de 2011. A autora é Neuza Maria Corrêa Barreiros, conhecida como Magrela, então presidente da associação de moradores. A carta era uma forma de Magrela prestar contas ao Patrão, como ela chama Girão, que, da cadeia — ele foi detido em 2009 e condenado a catorze anos de prisão por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro —, continua no comando da milícia local, segundo informações da própria polícia. Na correspondência, Magrela, que também responde a processo por integrar a quadrilha, relata ao Patrão ter sido procurada pelo subprefeito da região, Tiago Mohamed, um dos principais aliados do prefeito Eduardo Paes, para tratar de de política.
Num dos trechos, ela conta: "O Tiago, subprefeito, falou que o prefeito quer uma agenda comigo. Já sentiu o que vai ser, né? Pedir para apoiar alguém dele, lógico".
Procurados por VEJA, tanto Eduardo Paes como Magrela negam ter se reunido. O subprefeito Tiago Mohamed também nega ter falado com a ex-presidente da associação. Magrela, por sua vez. conta uma história diferente. Ela diz que recebeu, sim, um pedido para se reunir com Paes, mas afirma que só se encontrou mesmo com assessores do ex-chefe de gabinete do prefeito e vereador candidato à reeleição Luiz Antônio Guaraná (PMDB). Em abril passado. Guaraná contratou como assessor na Câmara um dos ex-funcionários do gabinete de Girão, Anderson Silva Moreira, também conhecido como Zoião. O tal assessor é hoje coordenador de campanha de Guaraná em Gardênia
Azul. A região, é bom que se diga, é base eleitoral de Eduardo Paes, de onde ele emergiu para a política no início dos anos 90. Natural, portanto, que sua chapa conte com apoio maciço ali. Mesmo assim, chama atenção o fato de, numa área onde residem 20000 pessoas, praticamente não haver sinais de propaganda dc nenhum outro postulante à prefeitura.
A operação em Gardênia Azul também trouxe à tona documentos reveladores das sombrias práticas da milícia. Um conjunto deles diz respeito às eleições de 2010 e indica que ali foi constituído um típico curral eleitoral. Foram apreendidos boletins oficiais de sete urnas da região, indicando quantos votos recebeu cada candidato a deputado estadual ou federal, governador e presidente. Com essa contabilidade, concluiu a investigação, os marginais puderam saber se suas ordens realmente haviam sido obedecidas. A polícia encontrou ainda uma lista atualizada com o nome de boa parte da população adulta da favela, seguido do respectivo endereço e número do título de eleitor. 'Ter acesso ao extraio das urnas e a dados pessoais é uma forma clara de a bandidagem demonstrar que controla uma etapa decisiva do processo eleitoral e esparlhar o medo", diz o delegado Antônio Ricardo, que conduziu a investigação. A intimidação de fato aconteceu, conforme moradores relataram à polícia com a promessa do anonimato. E a ação da quadrilha foi além. Afirma o delegado: "Há indícios concretos de que esses bandidos obrigavam muita gente da favela a transferir o título paia o Rio justamente para votar no candidato escolhido por eles".
Por muito tempo, as milícias foram vistas no Rio como mal menor ou até necessário, uma vez que seus integrantes agiam como justiceiros no extermínio dos traficantes — equívoco que mesclava cegueira com ideologia e que custou caro. Sem serem coibidas, elas esparramaram tentáculos pela cidade e pelos círculos do poder, tornando-se tão bem armadas e violentas quanto as quadrilhas de traficantes que iam expulsando de certas áreas. Um estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro dimensionou o avanço desses grupos. Em 2005, eles controlavam 10% das favelas cariocas; hoje comandam 41%. Formar bases sólidas na política é parte da estratégia para garantir sua força e sobrevivência. Na semana passada, a Secretaria de Segurança enviou ao Tribunal Eleitoral Regional (TRE) 25 nomes de candidatos suspeitos de integrar milícias — pelo menos um deles, já se sabe, pertencia à coligação de Marcelo Freixo (PSOL), cuja bandeira-mor é justamente o combate a essas gangues. As evidências recolhidas em Gardênia Azul deixam claro que atacai- as milícias não é apenas uma forma de combater a violência. É também uma batalha pela preservação da cidadania.
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